domingo, 29 de novembro de 2009

CRISTO E O MUNDO

Jesus de Nazaré chegou ao mundo em silêncio e humildade. Na casinha pobre de José e Maria, em Nazaré, nasceu mais uma criança, como tantas outras nasciam na mesma hora em toda a Palestina. Ouviu-se o choro da criança e os pais se encheram de alegre emoção. Naquele tempo a Terra ainda estava pouco povoada. Havia muito espaço e pouca gente. O nascimento de uma criança era uma bênção para o casal, por mais filhos que já tivesse. As necessidades mesológicas agem sobre os homens determinando o aflorar de anseios adequados. O culto fálico na remota Suméria não decorria de exagerado erotismo, mas da necessidade de povoar as imensas extensões vazias de território. Em Israel, o casal sem filhos era considerado em desgraça, ou seja, privado da graça de Deus. Para as famílias pobres, os filhos não eram carga, mas descarga. Desde pequenos ajudavam a manter a casa, engajavam-se no serviço. O nascimento de Jesus foi alegre e festivo para os pais e parentes próximos. A família aumentava e adquiria mais importância na vida social. A espera do Messias era uma preocupação constante, pois Israel necessitava de um novo Davi, que crescesse na graça e na fortaleza de lave, para expulsar Edom, o poder impuro dos romanos. Quando uma criança estava para nascer, numa família ligada à descendência de Davi, a expectativa crescia e as profecias surgiam de todas as formas. Muitas profecias foram feitas sem dar resultados. Mas a que se referira a Jesus deu certo: nasceu um menino e não uma menina. Esse menino podia ser o Messias. Não obstante, não houve sinais no céu nem na terra, os anjos não voaram sobre a casa dos pais e a neve só se tornou mais brilhante para os que estavam alegres. Apesar disso a expectativa continuou. Jesus cresceu na solicitação das esperanças da raça. Para forçar essa esperança, segundo o princípio mágico da influência da vontade humana sobre os deuses, todos viam no recém-nascido o futuro Messias. Só o tempo faria que essa esperança se apagasse, até que outro nascimento se desse em condições possíveis. Quando o menino começou a brincar naturalmente com os outros da sua idade, sem que nada demais acontecesse, todos se desinteressaram dele. Daí o silêncio que se fez a seu respeito, até o momento que, sendo levado ao templo, para a bênção da virilidade, respondeu com inteligência incomum à sabatina ritual dos rabinos. Então a esperança renasceu ao seu redor. Talvez fosse ele! As pessoas não iam, além disso. Tinham medo de proferir a palavra Messias. Mas depois do sucesso no templo, Jesus voltou a trabalhar com o pai na carpintaria e os rumores cessaram de novo.

Os anos correram com as tropelias e as fases de prolongada rotina. Jesus tornou-se um jovem inteligente e ativo, sonhador, mas nem por isso revelando sinais messiânicos. Por isso, quando resolveu iniciar o seu ministério, aquilo para que havia nascido, sua mãe e seus irmãos se assustaram. O velho José já havia morrido, pois não voltou a aparecer nos relatos. A inteligência e o senso de responsabilidade do rapaz o indicavam como o sucessor de José. Mas Jesus começou a falar de outro pai, com o qual tinha compromissos maiores: o Pai do Céu. Pensaram que ele estava enlouquecendo. Por isso, Maria e os demais filhos foram buscá-lo e ele se recusou a atendê-los. Estavam perdidas todas as esperanças. Como tantos alucinados daquele tempo, o jovem Jesus se transformava num rabino popular, sem ligações com o Templo, sem nenhuma forma de poder ou recursos em dinheiro que o pudesse levar ao sucesso. Maria sofria em silêncio as suas angústias. Esperava muito daquele filho, e agora o via atirado às feras herodianas e ao poder romano. Pressentia a tragédia, mas esperava no poder de lave. Quem sabe se aquilo não passaria logo e Jesus voltaria aos trabalhos da carpintaria. Como acontecia com todos os que sonhavam com a expulsão dos romanos ou apenas queriam defender a pureza de Israel, ameaçada pêlos goyim e pêlos traidores da nação, Jesus conseguiu adeptos que acreditavam nos seus poderes secretos. Entre esses, ele escolheu os que julgaram mais capazes de enfrentar a temerária empreitada. E foi então, só então, que as lendas da sua infância mágica, do seu nascimento miraculoso, da sua adolescência de sábio precoce, da sua consciência de ser um novo Davi, Rei dos Judeus e Senhor da Terra Prometida, começaram a formar-se e espalhar-se entre o povo. Era necessário que ele nascesse em Belém de Judá, na cidade de Davi, segundo as predições bíblicas. A imaginação popular aproveitou o recenseamento de Quirino, que só ocorrera dez anos depois do seu nascimento, para fazer que José e Maria fossem a Belém e o menino nascesse no lugar devido. Era fácil imaginar que naquela noite de inverno o céu estava mais rutilante, que os anjos baixaram no horizonte para cantar louvores ao Messias, que os animais se juntassem em torno do recém-nascido para aquecê-lo com o seu bafo, que os pastores se ajoelhassem comovidos nos campos gelados e que os Reis Magos de reinos distantes e misteriosos descobrissem no céu a Estrela de Davi e se apressassem a levar ao Messias os seus presentes simbólicos.

A mentalidade mitológica tem o poder do vegetal: suga da realidade os elementos necessários à elaboração da seiva e com esta produz flores e frutos. O mito nasce da água ou da terra, mas projeta-se nas estrelas. Por isso diziam os romanos prudentes que não se devia tomar a nuvem por Juno, a deusa que podia surgir no céu a qualquer momento. Parece-nos incrível que os homens daquele tempo se deixassem levar por tantas fantasias. Mas acaso os homens de hoje, na era da Razão, ainda não são capazes de criar é alimentar mitos? Também o nascimento de Buda foi cercado de fatos maravilhosos, de incríveis milagres. Mas só depois que ele já havia crescido, casado e abandonado sua mulher no palácio real para se entregar à busca da Verdade.

Este quadro do nascimento e desenvolvimento de Jesus, inteiramente despido dos acessórios mitológicos, pode parecer frio e vulgar, sem dados positivos que possam comprová-lo. Por outro lado, a tradição mitológica, arraigada no espírito popular e alimentada pelas festas e cerimônias religiosas, fará que muitas pessoas rejeitem indignadas, essa simplicidade. Mas, como lembra Guignebert, os que pensam que o Cristianismo nasceu e se desenvolveu de maneira diferente das demais religiões; estão seguramente enganados. As leis que regem os processos sociais são tão seguras e permanentes como as que regem, segundo queria Spencer, os nossos processos fisiológicos. No desenvolvimento das instituições religiosas temos sempre de considerar a presença de dois fatos básicos: a realidade histórica e a elaboração mítica dessa realidade. Não se trata de um processo exclusivo das religiões. Em todos os fatos sociais a imaginação se infiltra, produzindo e desenvolvendo o mito, em maior ou menor escala. No caso das religiões todas as escalas se rompem, pois a imaginação é estimulada fortemente pela paixão. As pesquisas históricas sobre as origens do Cristianismo, passadas pelo rigor do crivo metodológico, em mais de um século de trabalho, por uma equipe de especialistas universitários, não deixam a menor dúvida sobre as fantasias piedosas tecidas em torno do nascimento e da vida de Jesus.

Não se trata mais de qualquer’dúvida sobre a sua existência histórica, mas não resta também nenhuma possibilidade de se admitir como reais as lendas criadas a seu respeito. Os documentos, os costumes, as tradições do povo, muitas delas conservadas até hoje no meio judaico, constituem o acervo da provas que permitem a reconstrução dos fatos em sua simplicidade verdadeira, pois só a realidade é simples no plano histórico, negando a complexidade imaginosa dos mitos. Quem não dispõe de mentalidade positiva, preferindo embalar-se nos sonhos, deve ficar com a visão mitológica de seu agrado, mas convém ao menos compreender que fez uma escolha temerária, pois a fantasia se desfaz inexoravelmente no tempo.

O Cristianismo, que pelo poder do seu conteúdo moral e espiritual, já podia nos ter dado um mundo melhor, foi frustrado na sua intenção pelo apego dos homens ao maravilhoso, ao fantástico, e pela indiferença preguiçosa dos comodistas, que só pensaram em se acomodar e tirar proveito das situações criadas. Jesus não foi um alucinado, como o diagnosticou Binet Sanglé, nem um Deus, como querem ainda hoje os religiosos ingênuos, mas um homem, encarnação de um espírito superior, que se encarnou num momento decisivo da evolução humana, a fim de dar a sua contribuição para o progresso da Terra. Ele mesmo insistiu sempre em sua condição humana, chegando mesmo a comparar-se com os demais e a afirmar que qualquer um poderia fazer o que ele fazia. Por isso foi preso e morto pelos dominadores da época, que se sentiam ameaçados pela verdade que ele ensinava. E depois de morto, segundo os processos de execução do tempo, renasceu em espírito como todos nós renascemos após a morte.

Esta redução fenomenológica da figura sagrada do Cristo pode parecer exagerada. Algo diferente devia caracterizá-lo, para que ele pudesse impor-se como se impôs num meio discutidor como o judaico. Claro que existia, mas não no sentido sobrenatural. Jesus se impunha pela superioridade moral e intelectual, pela sua presença irradiante de amor e simpatia para com todos, pelo seu espírito compreensivo, pela sua personalidade espiritual transbordante de bondade. Mas também pela sua firmeza e energia, pela coragem de enfrentar todas as situações, por mais difíceis que fossem, pela sua franqueza na repulsa ao mal e a sua posição definida em todas as questões. Dispunha de dons espirituais que lhe permitiam curar, prever o futuro, libertar as vítimas de obsessões, como fazem hoje os médiuns suficientemente moralizados. Todo esse conjunto de qualidades superiores está hoje provado pelas pesquisas psicológicas e parapsicológicas. Mas o que mais impressionava ao povo e às autoridades do tempo era a sua disposição para o sacrifício, a ausência de medo diante do perigo.

Pode-se alegar, contra isso, o seu pedido no Horto para que o cálice da amargura fosse passado além. Mas esse episódio é também marcado pela presença de elementos míticos e aparece interpretado de maneiras diversas pelos exegetas. O seu brado final na cruz: “Meu Deus, porque me desamparastes?” Revela a sua condição humana na hora da agonia, quando as forças do corpo falecem e o espírito fraqueja. Ele se mantinha nessa condição, negando-se se diferenciar dos outros, da espécie humana a que se ligara. Ainda nesse episódio os elementos míticos, como o rasgar do véu do Templo, o escurecer do céu, o tremor da terra e assim por diante. É principalmente nesses momentos agudos da sua vida e da sua paixão que o colorido emocional do mito se manifesta, tirando-lhe a naturalidade e a grandeza. Sim, a grandeza, porque esta não está no mito, mas no homem.

As relações de Jesus com Deus, o Pai, se passam na intimidade de sua alma e não dos rituais do Templo ou de fórmulas exclusivas. Ensina aos discípulos a se dirigirem a Deus com a sua mesma simplicidade e naturalidade, com as expressões simples e humanas do Pai Nosso. Não usa vestes sacramentais, usando apenas a túnica e as sandálias. Não fala ao homem corpóreo, mas à alma do homem, tocando-lhe os sentimentos mais profundos. Chama-se ao mesmo tempo Filho de Deus e Filho do Homem, pois essa é a condição humana de todos nós. Não se coloca de intermediário único do homem com Deus — elemento mítico que a Igreja acentua como ponto central da Revelação nos Evangelhos sinópticos — pois ensina os homens a se dirigirem diretamente a Deus. E quando exclama que ele é o caminho, a verdade e a vida, é para afastar os homens dos caminhos traiçoeiros da hipocrisia farisaica, e indicar-lhes o caminho seguro dos seus ensinos renovadores. Havia uma oposição clara entre ele (que não ensinava o que era dele, mas o que recebera do Pai) e os fariseus, que ensinavam o que não haviam entendido. Era preciso mostrar claramente que os ensinos do Templo estavam superados e deviam ser substituídos pela Boa Nova que ele trouxera à Terra. Sua posição era declaradamente reformista. A velha religião judaica havia perdido o seu conteúdo espiritual. Transformara-se numa instituição política e comercial. Os fariseus dominavam Israel, ligados aos romanos invasores. O culto externo se refinara e multiplicara as suas exigências para os fiéis, obrigando-os a pesados sacrifícios, tanto para o cumprimento das obrigações rituais, quanto para a onerosa contribuição em dinheiro que, pelas mais variadas formas, deviam pagar aos cofres do Templo, além dos tributos cobrados rigorosamente pelas autoridades romanas.

Como Jesus, enfrentou o problema da dominação estrangeira? O episódio da moeda parece colocá-lo numa posição neutra até mesmo comprometedora: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Uma fórmula tipicamente oriental, acomodatícia e protelatória. Mas a situação estava demasiadamente tensa e perigosa. Os rebeldes judeus eram poucos e não dispunham de armas nem de técnica para enfrentar as guarnições romanas fortemente armadas e treinadas. A revolta de Judas Galonita havia sido profundamente desastrosa. Os rebeldes que não morreram na luta foram crucificados ao longo das estradas principais e ali deixados expostos para escarmento do povo. Naquele momento, os que se recusavam a pagar o tributo eram castigados ou mortos pelos romanos, com auxílio das próprias autoridades judaicas aliadas aos invasores. Era sabido que Jesus se voltara contra o Templo e os rebeldes procuravam o seu apoio. Se ele tomasse uma atitude política favorável aos rebeldes, a sua fama messiânica precipitaria mais um massacre romano sem nenhum proveito, servindo apenas para cobrir Israel de mais sangue e maior desespero. A sua própria autoridade moral desapareceria, pois esperavam dele a libertação de Israel pelo mágico poder messiânico. Seu anseio de libertação não era patriótico, era humano e universalista. Sua resposta segura e sensata liquidou a questão e lhe permitiu a continuidade da sua obra redentora.

Se Jesus fosse o louco da diagnose tardia de Binet Sanglé em seu livro La Folie de Jesus (A Loucura de Jesus) teria naquele momento precipitado uma das sangrentas tragédias coletivas da História, sem nenhum resultado benéfico.

O episódio da moeda romana esclarece a posição de Jesus diante do mundo. Ele enfrentava os problemas do mundo como um homem do seu tempo, mas dotado de visão mais profunda e mais ampla que os demais. Era um judeu integrado na raça, engajado na luta pelos direitos do povo, contra o sacerdócio traidor e os potentados traidores, mas não limitava a sua visão à Judéia, abrangia nela todos os povos e todas as raças da Terra. Seu objetivo era a libertação do Homem, não dos homens desta ou daquela nação, desta ou daquela raça. Por isso falava às almas encarnadas, despertando-as na carne, e não às encarnações de almas que em geral se perdiam na atração dos interesses imediatistas da vida material. Difícil posição, que exige um equilíbrio perfeito do espírito, um senso agudo da realidade imediata em sua relação dinâmica, não raro contraditória, com a realidade absoluta. No episódio da moeda, Jesus agiu com decisão instantânea, numa intuição total das implicações do problema que lhe propunham. Sua resposta foi um golpe de asa, ligando o Céu e a Terra, o problema humano ao problema espiritual, para lhe dar a única solução possível. Até hoje a maioria não percebe a grandeza daquela resposta que fez silenciar a malícia dos interpelantes. Vêem nela somente o que nela não existiu: a manobra astuciosa para safar-se de uma dificuldade. E isso nos dá a medida da nossa evolução terrena.

O episódio da mulher adúltera que ia ser lapidada nos mostra outro ângulo da posição de Jesus diante do mundo. Jesus não discute com os guardiões pretensiosos da moral social. Não perde tempo em argumentar com aqueles fanáticos palradores, viciados em sofismas e jogos de palavras. Permite a lapidação da infeliz, mas com uma condição: “Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. Não se dirigiu à mente daqueles homens ligados aos problemas mundanos. Propôs-lhes uma questão de consciência, falou-lhes às consciência e portanto a alma de cada um. E com isso bloqueou o fluxo da loucura coletiva, do sadismo e da brutalidade prestes a explodir. Os braços desceram, as mãos se abriram e as pedras caíram no alvo natural: o chão. Dizem que hoje o efeito seria o contrário, pela inconsciência dominante. Mas naquele tempo a situação consciencial não era melhor. O que hoje falta é quem saiba falar às almas e não aos homens. Então Jesus se dirige à mulher. Ninguém te condenou, eu também não te condeno. Vai, e não peques mais”. Ninguém nos diz o que aconteceu após isso. Mas é evidente que Jesus preparara as condições necessárias, com todo o impacto daquele momento, para falar também a alma emocionada da pobre mulher.

O problema sexual, por sua própria gravidade, fundado nas bases da vida e envolto nas mais profundas aspirações da alma, tornou-se para o homem comum o campo preferido dos seus desabafos contra a pressão social e do livre exercício da sua prepotência. Mata-se na defesa da honra ou por amor com a maior facilidade. Porque todos justificam esses crimes, pois todos têm sua culpa no cartório e desejam descarregá-la no próximo. A mulher lapidada seria a vítima das culpas recalcadas dos lapidadores. Jesus fez o contrário: tocou nas culpas de cada um e desarmou-os a todos, porque todos sentiram que eram irmãos e comparsas daquela pecadora que desejavam massacrar ao invés de ajudar. Sua posição nesse caso confirma-se na atenção a Madalena, aceitando a sua unção (que os judeus considerava impura) e integrando-a no seu grupo de auxiliares. E foi ainda mais longe, aparecendo a ela em primeiro lugar após a ressurreição. Como se confirmava espiritualmente o acerto de sua posição terrena em face do problema, para que não restassem dúvidas entre os discípulos.

Que terrível contraste nos oferece o Cristianismo Oficial em relação ao Cristo, nesse problema. A sexualidade (não apenas o sexo) é considerada fonte de pecado e todas as suas exigências devem ser sufocadas pêlos cristãos. Essas exigências não se referem apenas ao ato sexual (do qual nascemos), mas ao simples desejo que abre portas ao Diabo e ao próprio sentimento de amor que atrai as criaturas e lhes desperta o anseio de unidade afetiva, de fusão de almas para a realização recíproca dos objetivos da vida. O celibato sacerdotal, a clausura das freiras, os cilícios aviltantes, a deformação das adolescentes nos conventos através de instrumentos medievais para impedir o desenvolvimento normal dos seios, a obrigação de tomarem banho com roupas, sem se desnudarem, para que não se perturbe com a própria nudez e o Diabo não as tente ao vi-las nuas, são apenas alguns dos frutos bastardos dessa contradição ao Cristo. E tudo isso em nome do Cristo e da Doutrina redentora. O Cristianismo, que veio dar ao homem vida em abundância, transforma-se em repressor brutal e ignorante das manifestações da vida. O Cristo, que falava de beleza e da perfeição, passou a patrocinar os processos da deformação humana, no corpo e no espírito. Os chineses diminuíam os pés das mulheres para embelezá-las, os cristãos deformam os seios das adolescentes, atrofiando-os com a tortura de instrumentos medievais, deformando-lhes a mente com o temor constante do Diabo, enfeiando-as.

O Cristianismo do Cristo era um defensor da mulher, exaltava-lhe a beleza e a ternura, estimulava a sua pureza espiritual, integrava-a nos próprios trabalhos messiânicos, perdoava-lhe os erros e louvava a sua capacidade de amar. Madalena foi perdoada porque muito amara. O Cristianismo Oficial vestiu as mulheres de pesadas vestes negras, tirou-lhes o viço e a beleza, condenou os impulsos amorosos, fanou-as nos recessos dos conventos e muitas vezes as transformou em criaturas hipócritas e rancorosas. Muitas freiras voltaram da morte para gemer junto ao leito das companheiras e contar-lhes os segredos do Purgatório, onde julgavam estar, submetidas às torturas da consciência culpada. É o que se vê, por exemplo, no livro O Manuscrito do Purgatório, publicado na Espanha com todas as licenças eclesiásticas e traduzido e publicado no Brasil, por Edições Paulinas, de Petrópolis, na tradução do Padre Júlio Maria, também com todas as licenças das autoridades eclesiásticas brasileiras.

O caso de Zaqueu revela-nos outro ângulo da posição do Cristo diante do mundo. O pequenino e detestado publicano, ladrão contumaz, sobe numa árvore para ver Jesus passar na rua, no meio da multidão. Jesus poderia ter passado indiferente, como se não visse o publicano. Mas, ao invés disso, pára sob a árvore e permite que o leve à sua casa, pois quer hospedar-se com ele. Quantos murmúrios teria havido, quantos mexericos na multidão, quantos olhos arregalados de espanto. O Messias hospedar-se na casa de um publicano, talvez do pior deles! Zaqueu se comove com aquela honra inesperada. Promete devolver à pobreza a metade da fortuna acumulada com os seus roubos. Zaqueu se convertia, não a esta ou àquela religião, mas ao bem, à dignidade humana. Quem conheceria a mecânica social que através de pressões sucessivas, teria levado Zaqueu ao caminho do roubo? Jesus não o condenou, premiou-o. Mas esse prêmio tocou a consciência do publicano e ele se afastou do erro. O que interessava a Jesus não era a condenação, mas a salvação. A culpa de Zaqueu não era só dele, era também e principalmente da sociedade hipócrita e gananciosa em que vivia, daqueles que o forçaram a roubar para não perecer sem pelo menos a defesa do dinheiro, daqueles que o isolaram no aviltamento de si mesmo, que lhe negaram até mesmo a convivência do seu povo e o impediram de recorrer ao socorro e ao amparo da sua própria religião. Jesus não se interessava pela opinião dos Doutores do Templo, cujas mãos não estavam manchadas apenas pelos atos de rapina, mas também pela traição ao povo, à nação, às leis de pureza que fingia sustentar. No caso da mulher samaritana e do bom samaritano, essa posição de Jesus se confirma na rejeição do sectarismo, do orgulho religioso, da pretensão hipócrita de pureza.

Não se precisa aprofundar mais na relação dos fatos significativos da vida de Jesus. Bastam esses fatos para vermos que o chamado Cristianismo Oficial, como disse Stanley Jones, está mais distante do Cristo do que o chamado Cristianismo marginal dos nossos dias. A marginalidade, no caso, é determinada pelos que se apossaram indevidamente das fontes do ensino do Cristo e sobre elas construíram edifícios que, como os cenotáfios dos profetas, grandiosos por fora mas vazios por dentro, pois nem sequer os restos mortais do homenageado se encontram no silencio abismal do seu interior.

Jesus de Nazaré não é filho unigênito nem primogênito de Deus cuja paternidade não decorre de gerações biológicas. É um filho de Deus como todos nós, com a diferença apenas do seu grau de evolução, que é muito mais do que podemos supor Espírito que evoluiu em mundos anteriores à Terra subindo ao plano das constelações dos mundos superiores, voltou aos planos inferiores por um impulso de amor, para nos dar na Terra a possibilidade de avançarmos também, como ele na direção das estrelas. Por amor entregou-se ao sacrifício de mergulhar na carne, sofrendo todas as conseqüências dessa decisão consciente, a fim de nos arrancar do tremedal das idéias rasteiras e do circulo vicioso das encarnações repetitivas. Sua glória não e a de haver morrido na cruz, entre o bom e o mau ladrão que representam a nossa humanidade.

José Herculano Pires

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