sábado, 16 de maio de 2009

Atividades de Chico Xavier

Em 1962, Chico Xavier já mobilizava milhões de espíritas e católicos no Brasil. Para formar livros e leitores, o escrevente aposentado se impunha um ritmo estressante.
Acordava todos os dias às seis horas e, antes mesmo de tomar café, regava a horta. Às sextas e sábados, dias de sessões públicas, deixava o sono de lado para cumprir uma programação quase insuportável.
Chico costumava chegar ao centro meia hora antes da abertura dos portões, marcada para as 20h. Quando a fila começava a andar, ele já estava sentado à cabeceira da mesa folheando o Evangelho Segundo o Espiritismo ou o Livro dos Espíritos à procura de um bom trecho para ser lido e comentado naquela noite. Após escolher os oradores entre os companheiros espíritas, ele se refugiava num pequeno quarto destinado ao receituário. Os comentaristas se dedicavam a discursos quase intermináveis sobre a importância da paciência, do perdão e da caridade, e Chico passava para o papel as dicas do Dr. Bezerra. Muitas vezes, atendia a trezentas pessoas por noite. Por volta das 21h as receitas começavam a sair por uma abertura na porta do cômodo onde ele trabalhava.
Em noites de casa cheia, Chico ficava até meia-noite confinado. Quando voltava para a mesa, os espectadores só faltavam aplaudir, não só por sua presença, mas pelo fim dos comentários evangélicos. A presidente do centro pedia silêncio, meditação, prece. Chico fechava os olhos, segurava o lápis e as frases se espalhavam pelo papel. Waldo em geral o acompanhava no dueto do além. Às vezes, quando um parava, o outro começava, e os dois produziam textos complementares assinados pelo mesmo"autor".
O espetáculo atingia o clímax quando Chico preenchia as páginas em branco com as esperadas "mensagens particulares". Nessas longas noites mais produtivas o ritual costumava se prolongar até as 3h. Era a hora de a multidão se aglomerar em volta de Chico. Risonho, de pé, com uma paciência indestrutível, ele atendia a centenas de pessoas, autografava livros, contava casos, ouvia histórias, ria, orientava. Era rara a noite em que não precisava recorrer à velha frase: O telefone só toca de lá pra cá.
Mães levavam os filhos para ele tocar, outras se limitavam a chorar em silêncio, alguns desmaiavam. As cenas de idolatria se seguiam madrugada adentro.
Um dos visitantes mais assíduos era um rapaz chamado Jorge. Sempre descalço, enfiado em roupas remendadas e fedorentas, ele vinha da favela e, ao ver Chico Xavier, abria um sorriso dolorido. Carregava no lábio inferior uma ferida crônica, que se abria e sangrava a cada riso. Era sempre assim. Além do machucado, sua boca trazia dentes apodrecidos. O hálito beirava o insuportável. Quase todos no centro, e em todo canto, fugiam dele. Chico o recebia com um abraço demorado e a pergunta de praxe:
- Jorge, como vai a vida?
- Ah, tio Chico, a vida é uma beleza.
A conversa às vezes se estendia por cinco, dez, quinze minutos. A fila parava, gente suspirava, os mais impacientes olhavam para os lados, se coçavam, bufavam, rezavam.
Jorge falava da briga dos gatos, da goteira sobre a cama, do ninho no telhado. Só calava após muita falação.
Quando todos já saboreavam o fim do suplício, Chico anunciava:
- Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos.
Ele recitava algumas rimas e Chico cobrava, então, o grand finale:
Na nossa despedida, declame o poema de que mais gosto.
- Qual, tio Chico?
Aquele da moça.
Jorge tomava fôlego, olhava para os lados para conferir a
atenção do público, e enchia a boca:
Menina, pen teia o cabelo,
joga as tranças pra cacunda.
Queira Deus que não te leve
de domingo pra segunda.
O riso era geral. A sensação de alívio estimulava o senso de humor. Jorge se aproximava de Chico, recebia dele alguns cruzeiros e os guardava na capanga.
Em seguida, se jogava sobre o anfitrião, dizia as últimas palavras a um palmo de seu nariz, beijava sua mão. Chico retribuía. Não só beijava a mão de Jorge como sapecava um beijo em seu rosto. Para encerrar, o rapaz deixava nas bochechas de Chico as manchas de sangue de seu lábio.
Os amigos ficavam impressionados. Nunca, em vários anos, Chico esboçou um recuo instintivo. Nunca levou o lenço ao rosto após a saída de Jorge.
A romaria só terminava por volta das 4h, quando Chico convidava os mais resistentes a tomar chá e café, acompanhados de pão e rosca, na cozinha. Era a hora da conversa descontraída. Muitas e muitas vezes, já eram 5h quando o anfitrião se despedia dos últimos visitantes.

Marcel Souto Maior (As Vidas de Chico Xavier)

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